23 de novembro de 2009

Escarro


Acabei de assistir uma peça de teatro em minha escola e esta me deu alguns dilemas sociais para refletir. A peça foi constituída de apenas dois atores, bons por sinal. Se me permitirem a esdrúxula comparação, a peça tinha cor de catarro. Todos temos, porém jogamos fora com ar de nojo, como se aquilo nunca tivesse saído de nós mesmo. Sim, caro leitor, a peça tinha aparência de escarro, pois falava de tudo aquilo que eu e você não falamos. Eles falaram e interpretaram tudo aquilo que o ser humano esconde no fundo da consciência para não termos que assumir a nossa própria culpa.
É fácil culpar os capitalistas pelo aquecimento global, é fácil culpar o assassino que apodrece em sua carcaça marcada. Tudo isso realmente é muito fácil. Difícil é admitir a própria culpa. Difícil é pedir perdão, vindo do coração. Difícil é olhar para o próximo e tentar colocar-se no lugar dele para sentir o que ele sente. Tentar entender o porquê de o assassino ter se tornado tão cruel. É fácil dizer que quem nasce ruim, quem nasce podre nunca se endireita. É fácil apontar o erro, difícil e estender a mão para os que choram sem lágrimas. Difícil é sentir a dor daquele que tem a ferida na alma e que não encontra remédio para a cura. Difícil é se tornar alguém melhor, não por interesse. Mas por vontade, pelo amor para com a humanidade.
Hoje assisti a uma peça que falava sobre a podridão do homem enquanto ser pensante. Vi de perto a reação do escarro da verdade atingir alguém como se fosse uma bala certeira de um revólver imaculado. Surpreendi-me... Aliás não. Tive medo. Sempre soube que existem pessoas que não se dão ao trabalho de refletir sobre o direito divino da vida. O belíssimo direito da vida. Tenho medo das pessoas que decoram e não entendem.
O ponto da dor foi ao final peça, ironicamente depois de palavrões e cenas de violência. Surpreendentemente, depois da menção de Jesus Cristo.

Injusto é aquele que suja as mãos com sangue de inocentes, que zomba e cospe daqueles que estão abaixo de si. Porém, de que serve a justiça se não para julgar? A nossa justiça que julga inocentes, culpados. E culpados, inocentes. A justiça que liberta um inocente e manda mais de mil para cadeia. A justiça que mata um bandido mata dez inocentes.    
 [...]
 O que é ser um bom exemplo? Desculpe, essa pergunta é muito difícil para vocês... Vou modificá-la. O que é ser um mal exemplo? Talvez encher a cara e bater com o carro? Por aqui isso todo mundo faz. Vender drogas para adolescentes? Por aqui isso todo mundo faz. Roubar? Isso por aqui todo mundo faz. Xingar? Brigar? Quebrar? Por aqui isso todo mundo faz. Não quero ser hipócrita, mas os justos só se fodem. Começando por aquele que morreu na cruz. Para alguns se matou a toa, para outros foi um herói. Dizem que um dia a justiça será justa. É difícil acreditar... A única coisa que não é tolerável é que jovens morram na mão das drogas, ou que crianças morram na mão na criminalidade. Não quero ver minha filha se tornar prostituta, sem motivo real. Você gostaria que a sua filha se tornasse uma prostituta ou que seu filho se tornasse um bandido, ou um assassino, um dependente de drogas? Tem coisa que não se é possível evitar, mas outras são escolhas e eu torno a perguntar. O que é ser um bom exemplo? Vocês acham que são culpados pelas coisas que acontecem no mundo? Pela poluição? Pelo caos urbano? Tem gente que nem ao menos sabe o significado da palavra ‘caos’. Como vou culpar essas pessoas se eles nem ao menos sabem o que fazem. Todos sempre acham que não tem culpa, que o mundo está assim por que Deus quer.Estão muito enganados! Se o mundo tá assim, a culpa é de você! São vocês que não assumem os seus próprios erros! Seus covardes! Se estão incomodados com o que estou falando, saiam!  [...]”
Quando o ator pronunciou esta última fala, uma garota bruscamente se levantou. Encaminhando-se para a professora e balbuciou algumas palavras que, para mim, foram apenas gestos com a boca devido à grande distância que eu estava dela. Depois, com a mesma impaciência no andar, foi em direção a porta. Fazendo do estrondo que fez ao sair toda a sua raiva com as palavras ditas.
Fiquei assombrada com tal gesto. Ela sempre fora uma garota tão gentil e afetuosa. Sua voz sempre demonstrou o timbre da passionalidade. Fiquei boquiaberta com tal desfecho. Percebi que até os atores se espantaram com a reação dela. Estou aqui tentando compreender o que ela escutou para ter tanta raiva. Foi o mesmo que eu escutei! Não vi, e nem li, nas palavras ditas alguma intenção de ofender a imagem de Cristo. Meus ouvidos captaram uma crítica direta ao ser humano. Quanto mais penso sobre isso, mais me vejo longe do que ela sentiu quando ouvira as mesmas palavras que escutei.
Para quem leu até esta linha escrita com a tinta do incompreensível, por favor, pensem. Pensem sobre o que escutam. Reflitam sobre o que acham. Revejam seus conceitos todos os dias, todas as horas. Somos mutáveis. Extremamente mutáveis. As evoluções das espécies provam tudo! Estudem. Leiam. Critiquem. Sintam a dor daquele que você nunca viu.
Não entendo como muitos olham para os feitos de Jesus com olhos cheios de emoção, vangloriando o que ele fez e disse quando não tentam ter, pelo menos um pouco, da compreensão que Ele teve? Acho que Jesus não sairia daquela sala. Acho que ele riria com gosto e aplaudiria a franqueza misturada com o humor que aqueles jovens atores apresentaram o tema. Ele iria estar tão feliz que seus amados irmãos conseguiram fazer da arte um instrumento do pensamento que iria estar com lágrimas nos olhos.
Curvo-me a tudo o que ele disse e fez com honra, sim, porém me curvo também diante daqueles que fizeram da sua própria vida uma idéia eterna. A idéia do pensamento individual. Curvo-me a todos que fazem de sua vida uma luta eterna em busca de um sonho. Curvo-me diante de cada ser humano que possua uma jóia única dentro de seu ser. Mas, não todos. Quero ser grata somente aqueles que esculpem sua jóia. Aqueles que procuram várias e várias formas que embelezar sua jóia.
A jóia, querido e paciente leitor, é a jóia dos pensamentos.

Peça: Vila Alfazema
Elenco: Ary dos Anjos e Victor Hugo